Quando
estava no limiar do sono, o grito desesperado de um corvo me puxou de volta à
realidade. Morfeu, zombeteiro, conseguiu quebrar as correntes que eu tinha
posto em sua volta e fugiu do meu apelo. O corvo voltou a lamentar, como um
presságio negro. Uma promessa de morte. Era um canto alvoroçado, como um
recém-nascido sentido o primeiro toque de vida ao sair do útero de sua mãe. Um
calafrio percorreu minha espinha. Senti os pelos da minha nuca e dos meus
braços se ouriçarem. Tive a impressão de que, de repente, todo o calor do meu
corpo havia fugido com medo do canto do corvo. Ajeitei as cobertas e tentei
agarrar novamente o sono, que havia me escapado com tanto escárnio segundos
antes.
Um terceiro grasnar, agonizante,
cortou a noite em mil pedaços antes de morrer, como a última nota de um piano
numa triste sinfonia. Abri os olhos num movimento repentino, como se acordasse
de um pesadelo. A noite estava calma e fria, e o céu, como pude ver pela
janela, estava limpo e estrelado. O Cruzeiro Do Sul piscava, como se estivesse
estrategicamente posicionado para chamar minha atenção. Seu brilho me seduziu e
me perdi em pensamentos distantes, admirando as estrelas. Minha mente divagou
por eras já passadas e aventuras já vividas. Perdi a noção de tempo e espaço
enquanto olhava fixamente para a cruz brilhante, sem me atrever a deixar minhas
pálpebras entrarem no caminho. Sua hipnose me prendeu por um tempo que já não
conheço. Após o que pareceram milênios, percebi que não encarava mais as
estrelas, e sim a Foice da Morte, que vinha ao meu encontro, tal qual a
profecia do Corvo. O toque da lâmina foi certeiro, atingindo-me no coração,
fazendo meu sangue derramar e minha vida esvair-se. Quando meu último suspiro
libertou-se do meu ser, o Corvo cantou novamente. Agora um canto de vitória.
Mas,
surpreendentemente, eu continuava admirando o Cruzeiro do Sul. Ainda sentia o
frio da noite, ouvia o canto dos insetos, sentia o cheiro da cidade. Tudo não
havia passado de um truque da minha mente exausta. Fechei os olhos e deixei meu
corpo descansar.
Então,
como se estivesse esperando por este momento, o Corvo entoou seu hino mais uma
vez. E, como a centelha que inicia a chama, eu entendi.
Morfeu
não havia fugido do meu apelo. Ele o havia atendido, mas de uma forma que eu
não esperava.
Eu
estava, agora, preso em seu reino. E não havia nada que pudesse fazer para
sair.
E o
Corvo cantou pela última vez. Como uma risada triunfal. A risada de um vilão.
A
risada do próprio Satã.
Um
presságio negro. Uma promessa de morte.